Sangue de Bairro é a série fotográfica realizada por Affonso Uchôa e Desali no lugar onde cresceram e moram, o Bairro Nacional, em Contagem – MG. Foi exposta no Ciclo de Mostras BDMG Cultural em 2021.
O Bairro Nacional é uma “quebrada”, um bairro de periferia. Na história das imagens brasileiras, os espaços pobres sempre sofreram com uma representação que osciliva entre o “charme exótico” e o paternalismo. Produzidas em geral por pessoas de classe média ou da elite, boa parte das imagens dos despossuídos brasileiros focou na denúncia social ou no pitoresco, ignorando a complexidade das pessoas e lugares retratados. O pobre nessas imagens raramente apresenta alguma dignidade ou potência fora do discurso que o fotógrafo deseja construir.
Sangue de Bairro retrata a realidade periférica desde um olhar mais íntimo e aproximado, O fato de Affonso e Desali serem do Bairro Nacional faz com que as imagens da série apresentem um retrato mais diverso e sem julgamentos. Há nas imagens da série momentos de intimidade e retratos do cotidiano, assim como também instantes de euforia e êxtase. O universo da série transita por retratos tomados à luz de um prosaico fim de tarde, e segue até instantâneos de convívio com as drogas e a violência. A periferia de Sangue de Bairro tem os utensílios domésticos e também o revólver, compondo um mosaico amplo da vida na quebrada.
A série atualiza um tradicional princípio fotográfico: a imagem é a revelação de um estado do mundo. Sangue de Bairro trafega em rota diversa da fotografia conceitualista contemporânea. As fotos da série são expressões do mundo, em especial de um lugar específico do mundo, e não sintomas de uma economia das imagens. Sangue de Bairro se origina de um trabalho tradicional em fotografia: a deriva pelo mundo em busca de um esplendor que transforme uma presença em imagem. A série é devotada a capturar a existência fulgurante dos lugares, corpos e instantes do Bairro Nacional.
Ao mesmo tempo, a série também encara uma questão fundamental da linguagem fotográfica: o jogo entre quem retrata e quem posa. O jovem deitado em posição frágil na cama e a mulher preparando seu cachimbo de crack expõem seus momentos e segredos íntimos para imagem. A origem dos fotógrafos os auxilia a testemunhar de mais perto a vida de seus vizinhos. A série também abre as portas para uma participação mais ativa do retratado, deixando o registro de momentos de performance ou pose consciente. É o que se vê na foto que cobre o rosto com a sua mão tatuada, ou no retrato do jovem Wederson Neguinho (personagem e ator constante dos filmes de Affonso), fumando cigarro em uma lanchonete durante a tarde, conscientemente construindo o retrato com postura do seu corpo.
Acima de tudo, está nas fotos a força e dignidade dos rostos das pessoas que vivem naquele lugar. As imagens da série retratam momentos humanos e pessoais, ao invés de signos do drama social, escapando do sensacionalismo. Em Sangue de Bairro os corpos e vidas pobres, invisibilizados e esquecidos na sociedade, tem força incomum, e a imagem é testemunha da sua potência. Em suas imagens, a série traduz a melodia da vida na periferia, que ressoa em Contagem, mas também no Rio de Janeiro, São Paulo e em todo lugar de excluídos pelo mundo afora. O Sangue de Bairro corre nas veias de toda quebrada.