Não que eu possa esquecer

Instalação realizada na área interna do Parque Municipal Américo Renné Giannetti, em Belo Horizonte, durante o evento Noite Branca, no dia 14 de setembro de 2012. A obra é composta de três peças que, juntas, compõem a narrativa e o significado da instalação. O objetivo era retomar experiências e histórias que marcaram a trajetória do parque e da cidade. São histórias que se desejam esquecer, que falam de aspectos sujos e sombrios do espaço, que deixam transparecer um lado nebuloso do parque frugal e familiar. A ação se embasou em pesquisa de campo e entrevistas com o autor do livro Paraíso das Maravilhas, Luiz Morando.

São três peças dispostas proximamente uma das outras. Na torre de escorregador duplo foram alocados dois spots giratórios de luz, compondo um faxo que ia varrendo e procurando o espaço ao redor constantemente, à maneira das luzes de buscas e apreensões. Pouco a frente aos escorregadores, na praça, um monitor de computador em cima do banco. O dispositivo transmitia imagens de figuras sociais que marcaram a vida do parque municipal e compõem o tecido social da cidade de Belo Horizonte, mas que não são bem-vindas no local: travestis, prostitutas, menores de rua, vagantes e flanantes anônimos. Por último, ao lado da praça, atrás do prédio da Guarda Municipal, foi cavado um buraco no gramado e, dentro da cova, alocada uma caixa de som da qual sai uma voz que narrará histórias de crimes e violências que marcaram a vida do parque e da cidade.

As três peças conjugadas compuseram a instalação. Como elas estavam alocadas proximamente uma da outra, era possível perceber que formavam um conjunto, que se relacionavam entre si. Havia a luz que vasculhava incessantemente à procura de irregularidades e fatos estranhos, uma praça de encontro do público do evento com imagens das figuras indesejadas, mas que fazem parte da história do parque e da cidade, bem como a lembrança das mortes, dos acontecimentos mais soterrados do espaço. Imagens das “impurezas” sociais e vozes dos que morreram. Lembrança daqueles que se deseja esquecer, deixar do lado de fora das grades e, sobretudo, daqueles dos quais não se deseja sequer lembrar a existência em um momento de celebração. Imagens das “sujeiras” do cotidiano e vozes dos que perderam a vida com violência. Sempre observados por uma luz que vasculha a tudo incessantemente. Uma luz que representa o olho de um poder que, por mais força que tenha, não pode ver nem brecar tudo.

O parque municipal era refúgio de lazer da elite belo-horizontina em começo do século XX. Depois, ao longo das décadas seguintes, ampliou seu alcance e passou a figurar o ponto de encontro e trocas sociais de toda a cidade. Já na década de 30, o parque, ao mesmo tempo em que servia aos passeios e afazeres familiares, transformou-se em um local de encontros amorosos diversos. Sobretudo, encontros homossexuais, que geraram reação no conservadorismo da então extremamente provinciana Belo Horizonte dos anos 40, o que culminou num célebre e trágico assassinato de um homossexual em pleno parque.

Mais adiante, na segunda metade do século XX, foram colocadas as grades que o cercam e o isolam do ambiente da cidade ao redor. Tal medida já visava garantir certa distância e controle sobre os frequentadores sem que, porém algumas presenças destoantes do clima bucólico e pacato do parque continuassem a frequentá-lo: prostitutas, traficantes e viciados eram costumeiramente vistos no parque, sobretudo quando ele ainda funcionava em turno noturno. Mais adiante, já entre os anos 1960 e 1970, o turno noturno foi suspenso.

Portanto, o propósito da instalação Não que eu possa esquecer foi trazer à tona essas histórias, essa face rejeitada da trajetória do parque municipal em Belo Horizonte. A frequentação dos párias e das minorias e as reações violentas à presença deles no local faz parte da história fundamental do parque e não poderia ser esquecida. Sobretudo em momento tão especial, no qual se celebra novamente o convívio e a troca em seu espaço.

 

As constantes exclusões dessas figuras destoantes, dessas “nódoas” da normalidade, revela a relação de violência e exclusão que a cidade de Belo Horizonte traça com as minorias. O parque municipal não foge à regra, com grades e guaritas vigiadas. Dessa forma, trazer à tona a história dessas figuras e ressaltá-las como componente fundamental da história do parque é um gesto de afirmação da importância de suas presenças e experiências. Ainda mais quando o parque abre novamente em turno noturno, o turno sombrio, em que os desejos mais reprimidos da cidade se encontravam e se efetuavam à sombra das suas árvores, em fuga ligeira da luz dos vigilantes.

Para não esquecer que, para além da celebracão do evento Noite Branca, pode-se fazer dele uma ocasião privilegiada para repensar a cidade e o parque como espaço de trocas e convivências. Para não esquecer que ali pulsaram desejos e vidas que se afirmaram, mesmo sendo reprimidas por toda a cidade ao redor. Vidas que se foram no ato de buscar seu prazer ou seu desejo. Para não esquecer que, para além da camada superficial, sempre há uma subterrânea, com histórias de sombra e dor, que emergirão mais cedo ou mais tarde.