Entre Aspas é um coletivo baseado na criação de instalações que questionam a mobilidade, convivência e socialização no espaço urbano. Em ação nas ruas de Belo Horizonte, o coletivo de intervenção urbana desenvolve trabalhos a partir de material reciclado, sempre com resultados provocativos ou filosóficos. A partir de derivas noturnas pelo centro urbano, que vão até o dia amanhecer, desenvolve trabalhos com todo tipo de materiais encontrados nas ruas por onde passa, tais quais madeira, sacos de lixo, entulho de caçambas, entre outros. Portanto, transforma a rua em uma galeria de arte aberta e interativa. Os artistas Palestina, Loreno, Gton, Mario Rufino (in memoriam), Guima, Mosh e Desali são os integrantes mais assíduos do grupo ao longo dos anos.
A exposição realizada na AM Galeria SP e composta por fotografias e vídeo-instalações das ações de intervenção urbana e esculturas efêmeras que o Grupo “Entre” realiza nas ruas de Belo Horizonte desde 2006. Paralelo a esse trabalho também serão expostas obras do artista Desali que faz parte do Grupo, alguns trabalhos inéditos feitos em técnica mista, pinturas geométricas em madeira e desenhos em jornal realizados ao longo da pandemia em 2020.
Como se pode ver pela significativa documentação fotográfica apresentada nas paredes da Galeria AM, as derivas propostas pelo “Entre” são de outra ordem, de que são exemplares o carrinho que protagonizou a mais recente delas, a primeira desde o começo da pandemia, e que os intrépidos Desali e Palestina estacionaram no centro da sala da AM. Produto típico da engenhosidade forjada no trato com o precário, tão comum nas periferias das nossas grandes cidades e nos rincões pobres dispersos pelo nosso país, o carrinho, heroicamente empinado como um cavalo por dois cabos que o prendem a viga que corre no teto, tem como chassi os restos de uma cama de solteiro e quatro rodas desiguais, um par de rodas maiores de bicicleta, dessas encontradas em ferro-velho e lixões, numa ponta; e na outra ponta duas menores, com pneus de borracha e estrutura metálica novinhos, possivelmente os únicos itens comprados, emendados à cama por meio de uma estrutura feita por tábuas de madeira reaproveitadas. Sobre a cama há um colchão de espuma arruinado e dobrado, uma mangueira sanfonada amarela, garrafas pet de dois litros, pneus, tranqueiras variadas e indiscerníveis, e uma espécie de touceira esfrangalhada feita de galhos secos, encontrados na rua, provavelmente em caçambas de lixo, enfeitado com uma fita branca chamuscada de tinta vermelha espreiada sobre ela. Na frente do carrinho, apoiada no que um dia foi a cabeceira da cama, uma tevê de tubo de vinte polegadas, passa o filme da ação ocorrida em agosto, portanto há pouco mais de um mês, entre às duas da tarde e às sete da noite. Acompanhados por dois bailarinos do grupo Cultura do gueto, Palestina e Desali saíram do bairro da Lagoinha em direção ao centro de BH, empurrando o carrinho, convocando os curiosos à ação, a se juntarem ao grupo alegre e simples como os saltimbancos dos primeiros filmes de Fellini, improvisando construções, esculturas e instalações fugazes a partir dos objetos e materiais que iam encontrando, todas elas dotadas de sentido crítico. Afinal, fazer do lixo a matéria prima do trabalho, por si só garante a linhagem política de seu trabalho, ao mesmo tempo em que comprova que a arte é um ser em movimento contínuo.
A obra Doa-se Terra, ocupando o chão e a parede diante do carrinho. No chão, justapostos como uma instalação minimalista, uma coleção de tijolos artesanais numerados pelos mesmos Palestina, Loreno e Desali, com varetas enquanto o barro estava fresco, como conta um outro vídeo sobre o processo de produção do trabalho. Ao lado das linhas e colunas de tijolos, encostado na parede, há um pequeno embrião de um muro encimado com cacos de vidro, personagem corriqueiro da paisagem urbana, um dos signos clássicos, de agressividade tão frágil quanto ridícula, da proteção das posses. Doa-se terra faz eco ao clamor do Movimento dos Sem-terra, rurais e urbanos, em sua luta perpétua pelo direito a uma casa, no caso das ocupações urbanas, pelo direito de ocupar os incontáveis imóveis cinicamente desocupados à espera de valorização, indiferentes aos impostos devidos, acobertados que são por leis discricionárias. Esse trabalho, ao contrário do que se espera do mercado de arte, não está a venda. O visitante pode apenas escolher o tijolo com o número de sua preferência para que os artistas, simpática e generosamente, empacotem-no e firmem com carimbos e assinaturas o certificado de propriedade. No que diz respeito à esfera artística, uma conduta como essa ensina sobre o que efetivamente tem importância.